O grande potencial energético do Brasil: mais investimentos e diversificação são necessários

No mês de junho e início de julho de 2021 os temas “apagão” e “racionamento” de energia foram trazidos novamente à tona no Brasil, devido ao nível baixo de água nos reservatórios que servem às usinas hidroelétricas. Isso parece pitoresco, dado o fato de que o Brasil é o país com as maiores reservas totais de água doce no mundo.

Entretanto, os padrões climáticos mudam. E estão mudando de modo mais rápido e tornando mais difícil desenvolver e/ou atualizar modelos que exigem o conhecimento detalhado de múltiplas variáveis relacionadas ao clima. Variáveis como pressão atmosférica e nuvens mudam em cada ponto do planeta o tempo todo. A isso se soma o efeito dos gases de efeito estufa, e como pequenas variações na concentração desses gases afetam outros padrões climáticos, por exemplo a retenção de calor na atmosfera. Isso se propaga afetando a temperatura das águas nos oceanos, a troca de calor entre a atmosfera e estes últimos, e consequentemente influencia as variações na evaporação, circulação de massas de ar e precipitação. Assim, é necessário o uso de supercomputadores para realizar milhões de cálculos e prever com certa confiança como o clima irá responder diante das pressões ambientais, provocadas em grande parte pelo somatório das atividades humanas. E mesmo com investimento em tecnologia e aumento do conhecimento essa é uma atividade com relativas incertezas inerentes. Mesmo assim, é possível estimar os possíveis impactos negativos relacionados às mudanças climáticas. E sendo ou não esse recente caso no Brasil relacionado a essas mudanças, é um cenário que deve ser considerado no futuro.

Com essa breve introdução, é possível antecipar que soa um pouco exagerado – talvez um pouco ufanista – quando se fala, inclusive em fontes vinculadas ao Ministério de Minas e Energia, como a Empresa de Pesquisa Energética, que a maior parte da matriz elétrica brasileira é proveniente de recursos renováveis. Eu acredito que é natural países, tal como pessoas, aproveitarem e as vezes até mesmo se apropriarem de discursos seguindo tendências em voga na sociedade, para acomodá-los às suas circunstâncias. Naturalmente, enfatizar que grande parte da matriz elétrica brasileira é derivada de recursos renováveis (cerca de dois terços derivada de hidroeletricidade), potencialmente causa impacto positivo e cria uma atmosfera de respeitabilidade: um país comprometido com as causas globais de mudanças climáticas. A realidade, porém, é que a hidroeletricidade no Brasil é explorada por razões históricas e econômicas, devido ao grande potencial natural do país para explorar este recurso, e não por um comprometimento ou engajamento com outras causas. Claro, isso não representa uma decisão errada; é o passo natural de qualquer civilização recorrer primeiro ao recurso que está imediatamente mais ao alcance e que representa inicialmente o mais baixo custo. Mas é necessário evoluir e ir além desse passo para dar continuidade ao desenvolvimento.

E, considerando os pontos mencionados acima, pode ser precário continuar assumindo que investimentos passados no potencial hidroelétrico do país continuarão a garantir com segurança o suprimento energético no Brasil. Este é o ponto crucial que eu pretendo ressaltar nesse texto. Enquanto o mundo procura diversificar as fontes de energia, as estratégias políticas no Brasil no setor energético precisam se antecipar também às demandas devido ao crescimento da população e às mudanças climáticas, que irão afetar o país certamente.

É interessante notar como países como a Alemanha e o Reino Unido, que possuem expressivamente menos dias de sol por ano do que o Brasil, têm investimentos desproporcionalmente maiores em energia solar do que o Brasil. Devido aos direitos autorais, eu não reproduzo os gráficos aqui, mas adiciono os links para acesso direto aos graficos, e breves legendas abaixo. Os gráficos e dados são da IEA (Agência Internacional de Energia), e mostram a distribuição de fontes de energia na matriz elétrica da Alemanha, Brasil e Reino Unido, para comparação (mostram também dados de diversos outros países e do mundo, basta selecionar as opções que te interessar). Como sugestão, abra os links em três páginas diferentes para efetuar a comparação de forma rápida.

https://www.iea.org/data-and-statistics/data-browser?country=GERMANY&fuel=Energy%20supply&indicator=ElecGenByFuel
(Geração de eletricidade de acordo com o tipo de fonte na Alemanha. Dados da IEA.)

https://www.iea.org/data-and-statistics/data-browser?country=BRAZIL&fuel=Energy%20supply&indicator=ElecGenByFuel
(Geração de eletricidade de acordo com o tipo de fonte no Brasil. Dados da IEA.)

https://www.iea.org/data-and-statistics/data-browser?country=UK&fuel=Energy%20supply&indicator=ElecGenByFuel
(Geração de eletricidade de acordo com o tipo de fonte no Reino Unido. Dados da IEA.)

Em termos de energias renováveis, desconsiderando a hidroeletricidade e os biocombustíveis, o Brasil na realidade precisa ainda investir consideravelmente mais. A fração aproveitada pelo potencial eólico no país tem crescido consideravelmente, o que é bastante positivo (cor laranja mais escura na base de gráfico relativo ao Brasil, mostrando um crescimento relativamente rápido a partir de ~2014). Mas ainda há espaço para crescer muito mais, dado o potencial no litoral do país, nas costas do nordeste e do sul do Brasil, e possivelmente em outras partes no interior.

Se olharmos para o total da matriz energética brasileira – isto é, não apenas para a energia empregada apenas para a geração de eletricidade, mas para todo o consumo de energia no país – a figura é ainda mais impactante. Podemos ver na figura abaixo que a contribuição de fontes não renováveis cresce substancialmente quando o total de fornecimento de energia é considerado para os diversos tipos de consumo.

https://www.iea.org/data-and-statistics/data-browser?country=BRAZIL&fuel=Energy%20supply&indicator=TPESbySource
(Total do fornecimento de energia no Brasil, distribuído pelo tipo de fonte. Dados da IEA.)

Além disso, é curioso que grandes investimentos em energia solar no país têm custado a ganhar momento. Como se vê nesses gráficos, o investimento em energia solar no Reino Unido, que possui em média menos do que 70 dias por ano de sol (dados do MetOffice, órgão meteorológico britânico) é ainda superior ao do Brasil, e se pode observar no interior ou “countryside” inglês com certa frequência a presença de “fazendas” solares, algo que parece quase incongruente ou irônico (fotos abaixo). Ou talvez irônico mesmo seja que no Brasil esse investimento seja comparativamente menor, dada a posição geográfica e a extensão territorial do país. Por outro lado, o investimento em energia solar na Alemanha é ainda mais impressionante, em que a contribuição total para a matriz elétrica é atualmente superior a 8%, como se pode observar também no gráfico acima. Isso num país com menos incidência direta de luz solar do que o Brasil.

“Fazenda” solar no sul da Inglaterra, nas proximidades da cidade de Oxford. Apesar do dia ensolarado nessas fotos, o sol na Inglaterra não brilha sempre desse jeito. E, ainda assim, há essas iniciativas espalhadas pelo país.

Há ainda potencial para estudos e investimentos em outras fontes de energia no Brasil. Uma dessas fontes que possui um potencial ainda pouco explorado e negligenciado no país é a energia geotérmica. Essa fonte de energia é proveniente de águas termais, que ocorrem naturalmente em meio a determinados tipos de rochas, em “aquíferos”. O princípio básico é simples: existe um gradiente natural, chamado gradiente geotérmico, em que as rochas se “esquentam” à medida que a profundidade em direção ao centro da Terra aumenta. Claro, não é necessário ir tão longe para alcançar essas águas quentes; dependendo das condições geológicas em determinadas regiões, algumas centenas de metros podem bastar para alcançar essas “águas quentes”, e em outros contextos pode ser necessário perfurar alguns quilômetros de rocha para poder explorar este recurso. Muitas rochas possuem também concentrações mais elevadas do que a média total das rochas em relação a determinados isótopos radioativos. Estes sofrem o processo natural de decaimento, produzindo novos elementos através de reações exotérmicas, e assim geram mais calor no meio ao seu redor. Nesse tipo de contexto, pode ser possível acessar e explorar “águas aquecidas” para o potencial geotérmico sem a necessidade de se perfurar profundamente na crosta. Uma vez que essas águas são alcançadas, o princípio básico de utilização da energia geotérmica funciona como na grande parte das outras fontes: a energia mecânica da água aquecida e pressurizada, nesse caso, é utilizada para girar turbinas quando trazida à superfície, de modo análogo às usinas hidroelétricas, e desse modo produzir eletricidade.

Novamente na Inglaterra, por exemplo, um país que não possui fontes de águas termais vinculadas ao vulcanismo, como na Islândia em contrapartida, investimentos recentes no aproveitamento de energia geotérmica numa região localizada no extremo sudoeste do país apontam para uma direção promissora. Esta região possui uma história geológica, e geologia no sentido mais amplo, não muito diferentes da geologia observada no sudeste brasileiro. Claro, uma vez que em diferentes níveis de observação e de detalhe os contextos geológicos diferem, estudos específicos para maior detalhamento e uma boa caracterização são, portanto, extremamente necessários. Ainda assim, isso sugere que há um potencial a ser explorado no Brasil, mesmo em áreas menos óbvias, sem ocorrências de águas termais próximas à superfície.  

Assim, concluímos que há um potencial sub-explorado em relação ao aproveitamento do potencial que a energia geotérmica tem a oferecer no Brasil. E, de modo bastante interessante, é possível aproveitar por exemplo a experiência e o conhecimento de geociências e engenharias empregados na indústria do petróleo e transferir essas habilidades para o uso em outras áreas. O próprio setor de óleo e gás no país pode aproveitar seu expertise e recursos tecnológicos e financeiros para se revitalizar e se diversificar, evitando sua extinção por se tornar obsoleto no futuro de um mundo em transição (uma analogia com a Kodak aqui é válida, em que a empresa de filmes fotográficos hesitou em investir e acompanhar a transição das antigas máquinas fotográficas analógicas para máquinas digitais. Hoje, as próprias companhias de máquinas fotográficas digitais têm que continuamente inovar e se reinventar para não perder espaço para empresas de telefones celulares, estes que inclusive podem fotografar…). Esse mesmo expertise é, naturalmente, diretamente transferível e aplicável noutra área correlata, a captura e armazenamento geológico de CO2, algo que pode ainda servir como fonte adicional de receita em troca por créditos de carbono, além de potencialmente contribuir com as metas do Acordo de Paris e com metas globais mais ambiciosas de se alcançar emissões zero até 2050.

Finalmente, com todo o potencial energético que o Brasil possui, a integração da rede elétrica através da América do Sul poderia gerar inclusive benefícios adicionais ao país, por meio da venda de excedente de produção elétrica para os países vizinhos, caso isso fosse alcançado no futuro.

Enfim, essa história mostra também como investimento em pesquisa, desenvolvimento e inovação são além de tudo questões estratégicas cruciais para a sobrevivência, soberania e independência tanto de países e governos como para empresas. Principalmente num mundo com mudanças aceleradas e em transição contínua.

Referências

(as mesmas encontradas ao clicar diretamente nos tópicos em destaque no texto, mas organizadas aqui para conferência rápida)

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57647243

https://www.correiobraziliense.com.br/economia/2021/07/4936223-comite-recomenda-medidas-para-evitar-racionamento-de-energia-eletrica-em-2021.html

https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_countries_by_total_renewable_water_resources

https://www.worldatlas.com/articles/countries-with-the-most-freshwater-resources.html

https://www.epe.gov.br/pt/abcdenergia/matriz-energetica-e-eletrica

https://www.iea.org/

https://www.metoffice.gov.uk/research/climate/maps-and-data/uk-temperature-rainfall-and-sunshine-time-series

https://www.cleanenergywire.org/news/germanys-solar-power-expansion-reaches-8-year-high-2020-adding-nearly-5-gw

http://igeologico.com.br/energia-geotermal-o-que-e-usos-e-presenca-no-brasil/

https://renewablesnow.com/news/geothermal-engineering-develops-projects-for-20-mw-of-power-in-cornwall-746392/

https://www.energylivenews.com/2021/07/02/uks-first-geothermal-boils-up-in-cornwall/

https://www.theguardian.com/environment/2021/jul/01/full-steam-ahead-for-cornwalls-geothermal-energy-project

https://www.usgs.gov/faqs/what-carbon-sequestration?qt-news_science_products=0#qt-news_science_products

https://unfccc.int/process-and-meetings/the-paris-agreement/the-paris-agreement

https://www.iea.org/reports/net-zero-by-2050

Publicado por Raphael Pietzsch

Sou um geoquímico profundamente interessado em entender a evolução da Terra e seus diversos acoplamentos, ou “esferas”, incluindo a vida que habita o planeta. Compreender processsos naturais que conduzem à hierarquização (ou organização em diversos níveis) e ao surgimento de novos estados de complexidade é uma grande motivação para mim. Entre outras coisas, a minha pesquisa envolve a investigação de como importantes ciclos biogeoquímicos na superfície planetária interagem e se retro-alimentam. Tectônica, clima e a vida interagem de forma contínua e intrincada, propagando-se dos níveis atômico e molecular à enorme escala planetária. Essas interações podem deixar vestígios da sua história registrada em minerais que compõem certas rochas sedimentares, e este material é o meu principal objeto de estudo, seja ele natural ou sinteticamente produzido em laboratório.

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